stereoloser

3.3.05

Lost In Translation [Encontros e Desencontros]



Meu primeiro carrinho. Um bólido de F1, plástico amarelo, rodas atrás maiores que as da frente, o capacete vermelho do piloto. Perfeito.
Com o tempo acidentes naturais foram acontecendo. Pneu €œ"furado"€�, uma roda que escapava, os adesivos do aerofólio que desgastaram de tanto brincar na chuva, capacete desbotado e amarelo. Alguns remendos, uma troca improvisada de roda e o F1 continuava sendo lí­der.
Com o natal veio a ameaça. Uma picape, plástico muito mais rí­gido, uma chavezinha na caçamba que permitia que desmontasse-o inteiro e voltasse a montá-lo. O F1 já não me dava tanta atenção e nem eu a ele. Mesmo assim sabiamos que era meu preferido.
Um tempo sem brincar com ele mas um dia a vontade veio. Fui procurá-lo e já aos prantos corri buscar ajuda materna que comunicou-me a partida do amarelinho para outra casa. Agora estava nas mãos de outro garoto.
Demorou mas o tempo me consolou. Sabia que ele tinha dado o melhor de si e eu também havia aproveitado ao máximo o tempo que passamos juntos. Esse sentimento durou até o dia que vi seu novo dono fazendo estripulias na areia do parque com meu ex-carrinho, brincadeiras que nunca havia imaginado fazer e, mais do que nunca, quis tê-lo de volta. O olhar sarcástico do garoto parecia refletir meu descuido com meu pequeno bólido. Corri para casa chorando mas meu lado vil já havia preparado a vingança. Peguei o carrinho do natal, aquele que o volante girava e comandava as rodas da frente e podia ser desmontado e montado infinitas vezes. Voltei para o parque e comecei a exibir meu novo brinquedo. Senti prazer ao ver que conseguira estragar a diversão do vizinho. Seus olhos não conseguiam desviar da picape. Convidou-me para brincarmos juntos e eu, cheio de raiva e rancor por algo que não era culpa de ninguém, cumpri meu papel de estúpido e agora era ele que corria para casa às lágrimas. Vitória.
Ledo engano. A noite chegou e sentia-me mal por ter sido escroto, por ter desejado mal, por ter magoado alguém.
Amanheceu, corri para o parque na esperança de que o garoto estivesse por lá, brincando com meu ex-carrinho. Arritmia, garganta seca e euforia. Lá estava ele. Aproximei-me mas ao perceber minha sombra levantou-se e começou uma corrida para longe de mim.
"€œEspera. Quer brincar com meu carrinho?"
Merda. O que eu estava falando? Aquele carrinho amarelo era meu por direito e agora eu partilharia mais ainda do que era meu?
De súbito parou e ficou assim por um tempo, parecia refletir sobre o convite. Virou-se e sorrindo ofereceu-me "€œseu"€� carrinho como troca. Aceitei. Chamados para o almoço, nos despedimos e acabamos trocando definitivamente os brinquedos. Não consigo lembrar de nenhuma outra refeição preparada por minha mãe tão boa quanto aquela. Ele estava de volta comigo, era meu de novo.

Vieram pêlos, adeus infância. Continuo sem saber me desfazer daquilo que amei e as coisas não são mais tão simples como ter uma picape para fazer o olho do outro garoto encher de lágrimas.
Porra, alguém me perguntou se eu queria crescer? Caro senhor sádico, devolva minha infância, por favor.
Escrevi ouvindo: Girls | Death In Vegas